Homenagem a um herói em "Carne Viva".

Morreu ontem por volta das 21h, em sua residência, o mais antigo funcionário em atividade do America-RJ. Erbert "Carne Viva" Vianna, mais conhecido como Carrasco. Foram 40 anos de dedicação ao futebol na função de massagista. No America muito mais. Fez de tudo pelo clube. O enterro aconteceu hoje às 15:30h no cemitério Jardim da Saudade, em Mesquita. Como era seu desejo, "Carne Viva" foi enterrado com o agasalho oficial do clube e junto com ele, uma Bandeira Rubra. O clube decretou luto por três dias.

Carne Viva viveu e sentiu na pele toda a história do America que nasceu com vocação para o futebol e foi, nas últimas décadas, vitimado por administrações desastrosas que quase destruíram o clube. De grande (na década de 60), passou a médio (na década de 80). Logo, por aqueles que dele se serviram, ficou pequeno. Está pequeno. Que encontrem - os atuais dirigentes - inspiração no grande exemplo de "Carne Viva" para resistirem primeiro e depois, fazerem o caminho da volta do futebol do America, ao brilho e as conquistas do passado. Vá com Deus Carrasco e repetindo os versos de João Cabral de Melo Neto: "Deus! Salve o America".
Silvio Kohler

Reproduzimos a seguir, matéria especial publicada em O Globo de 5 de Abril do ano passado, poucos dias antes do desastre do rebaixamento para a Segunda Divisão Estadual Carioca.

Guardiões de uma tradição que se esvai em sangue - (O Globo - 05/04/2008 ).
Em Édson Passos, a resistência da tradição tem a força de um índio amazônico, que preferia comer cruas as aves que caçava. Seu apelido, derivado do gosto pelo sangue, virou sobrenome e um estado de espírito diante do drama americano. Há 32 anos no clube, Erbert Carne Viva já se acostumou a conviver com a ferida que não fecha. Enquanto os jogadores passam pelo América em rápidas temporadas, o ex-massagista e a lavadeira Lurdes Ferreira conservam o patrimônio e a identidade do clube. Quando o elenco profissional se desmobiliza, restam os funcionários e a sensação de abandono.""- Nós, da antiga, merecíamos mais atenção e respeito. Depois que o futebol pára, vivemos numa penumbra, encostados ""- disse Carne Viva, de 68 anos. Por conta do jogo de camisas de um terrível time de peladas, que tinha nomes como Saci e Frankenstein nas costas, Ebert tornou-se conhecido como Carrasco, mas, na verdade, é vítima. Seu salário, na faixa de R$ 1 mil, está atrasado como os cerca de R$ 500 que Lurdes ganha para fazer de tudo em Édson Passos. Aos 74 anos, ela passa o café, lava o material esportivo e mantém limpo o banheiro das sociais em dias de jogo.""- Pelo América, já trabalhei de enxada, tapando buracos e regando o campo do Andaraí. Também já fui compradora da concentração do km 18 - disse, saudosa dos tempos de fartura no casarão da Via Dutra. - Era cinco estrelas. De manhã, jarras com tudo que era qualidade de vitaminas e ovos fritos. Tinha pudim, empada e pastel. Comprava cinco sacos de laranja. ""
Há 27 anos no clube, hoje ela se contenta com pouco. Lava com carinho a roupa suja, sem deixar que a insatisfação e o mau-cheiro tomem conte do ambiente de trabalho. Para o jogo de hoje, Lurdes disse que vai dar um jeito de usar amaciante nas camisas para amenizar o desconforto dos jogadores.""- O sabão não é de primeira, a gente dá um jeito. Quando a fase é boa, o sabão também melhora. ""
No ano passado, a qualidade do material foi superior a do time. Na disputa da Série C do Brasileiro, a diretoria antecipou metade da cota de TV de R$ 1,2 milhão que teria a receber pelo Carioca. Além da chance de voltar à Série B, desperdiçou dinheiro.""- Enquanto os adversários viajavam de ônibus, o América ia de avião e ficava em hotéis cinco estrelas. "" - lamentou o diretor, Jorge Viera - "" O clube gastou o que não tinha e o planejamento para este ano sofreu. ""Para reequilibrar as finanças, o clube trocou a pré-temporada pela cota de participação na Copa Pelegrino, com clubes Noruegueses. A goleada por 5 a 2 sofrida, em casa, diante do Caxias, na estréia, revelou as falhas no planejamento do time que tem em Gaúcho seu quarto técnico na competição. Ainda sob uma orientação questionável, no último domingo, o presidente Reginaldo Mathias prometeu ao elenco uma quantia expressiva como prêmio pela permanência. Em Carne Viva, o América prefere pagar pelo remédio do que pela prevenção da doença. No início do ano, o orçamento foi abocanhado por uma ação trabalhista de R$ 220 mil, cujo não pagamento implicaria na prisão do presidente. Somando salários de jogadores e comissão técnica, o clube gasta cerca de R$ 200 mil mensais com o futebol profissional, que recebe em dia, enquanto os funcionários já se acostumaram a esperar. ""- Tudo que se passa nessa vida é porque a gente merece. "" - disse Lurdes, enquanto embalava os sanduíches de pão de forma para o lanche dos jogadores na viagem.
Hoje ela vai acompanhar o jogo de casa em Quintino, mas já seguiu o América de perto nos tempos em que o futebol ficou sem sede até a construção de Édson Passos ""- Éramos ciganos, treinávamos em Bangu, Arraial do Cabo, Nova Iguaçu."" Carne Viva fazia parte do bando. Junto com a lavadeira, compunham e cantavam sambas para espantar os males. Com esforço, lembram de alguns versos em homenagem a Luisinho, o maior artilheiro do América, mas logo são traídos pelo tempo.

""- Muitas alegrias ele deu. E deu. Pelo Brasil afora...ah, esqueci. "" - lamentou a lavadeira, que não apaga da memória o vermelho que deu o tom de sua vida. ""- O América não desbota, sangue não perde a cor...Mesmo quando se esvai junto com as tradições do clube, o sangue é o sinal da vida que resta. ""- Estamos fazendo o máximo para estancar."- disse o ex-massagista que carrega a agonia no nome. "- Ainda dá para salvar.""